sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Entrevista - Miguel Reale Jr


Estado policial, juízes amedrontados, a Constituição desrespeitada. Para Miguel Reale Júnior, o que está na boca de cena do panorama descortinado com a Operação Satiagraha tem uma origem bastante precisa. Segundo Reale Júnior, a partir do escândalo do mensalão, criou-se “dentro do Ministério da Justiça e na Polícia Federal, uma cultura da interceptação telefônica”. Com isso, o que deveria ser “como estabelece a lei”, uma interceptação de 15 dias, renováveis por mais 15, estende-se, às vezes, para além de um ano. “É o país da bisbilhotice”, indigna-se. As declarações foram dadas por Miguel Reale Júnior em entrevista a Ivan Marsiglia e Rinaldo Gama, do jornal O Estado de S. Paulo (15/11).


 Os advogados do banqueiro Daniel Dantas pediram a anulação das provas da Operação Satiagraha alegando que o uso de agentes da Abin na investigação da PF foi inconstitucional. É uma crise de competências?

 Miguel Reale Júnior — O que me parece é que se criou, dentro do Ministério da Justiça e na PF, a partir do "mensalão", uma cultura da interceptação telefônica. A PF passou a usá-la como forma de obtenção de contra-informação. Isso se estendeu como uma rede na PF e, depois, com a ida do diretor-geral (Paulo Lacerda) para a Abin, ampliou-se para lá.

 

Há mesmo abuso no uso desse instrumento de investigação?

 Miguel Reale Júnior — Existem dados indicativos de que são feitas cerca de mil interceptações telefônicas por dia no Brasil, 300 mil por ano. E apesar da lei estabelecer que elas deveriam ter duração de 15 dias prorrogáveis por mais 15, e serem feitas apenas a partir de indícios de autoria de crimes, elas passaram a ser instrumento de apuração em busca de indícios. Algumas chegam a durar anos, numa evidente violação da privacidade.

 

Em uma entrevista recente ao Aliás, o juiz federal Sergio Moro citou casos de mafiosos americanos presos após escutas telefônicas que duraram anos...

 Miguel Reale Júnior — (Interrompendo) E por que tenho que pegar o exemplo da máfia americana para justificar a arbitrariedade brasileira? Acho até que a lei pode estender a interceptação para um prazo maior, mas não se pode desrespeitá-la nem perenizar a prática. Recentemente, o Tribunal de Justiça decidiu pela restrição das escutas. E o que houve? Dois procuradores da República, do Paraná, lançaram um manifesto no site do Ministério Público no qual têm a petulância de dizer que a decisão demonstra que altas autoridades da Justiça brasileira não são sérias! E aí vem o juiz (Fausto) De Sanctis, que foi meu orientando inclusive (no mestrado e doutorado na USP), e, numa postura que representa o pensamento do direito penal nazista, diz o seguinte: "A Constituição vale menos do que as aspirações e os sentimentos do povo brasileiro". É exatamente o que o código penal nazista dizia em seu artigo II: "Constitui crime tudo aquilo que ofende o são sentimento do povo alemão". Aliás, ele cita um autor, Carl Schimitt, que foi teórico do nazismo. Então, nós estamos caindo num totalitarismo. Está havendo aí uma inversão de valores e de hierarquia.

 

O excesso de interceptações telefônicas é problema da PF ou dos juízes que as concedem?

 Miguel Reale Júnior — Dos dois. Do juiz que deixa de examinar o que é determinado pela lei. E da polícia, que vai pedindo e fazendo da investigação policial uma bisbilhotice.

 

O senhor concorda, então, com a afirmação do presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, de que vivemos num Estado policial? 

Miguel Reale Júnior — Estamos vivendo num Estado policial. Outro dia, em uma palestra, Mendes disse o seguinte: "Por que tantos habeas-corpus chegam ao Supremo e ele acaba concedendo? Porque há um patrulhamento, e as instâncias inferiores têm receio de concedê-los e serem tachadas de protetoras de A, B ou C." Está se querendo fazer justiça social por via da justiça penal. Como se a injustiça ao rico compensasse a que continua a se praticar contra o pobre: nas delegacias de polícia, nas torturas, nas presunções de culpabilidade, na quebra do princípio da presunção de inocência com relação tanto aos crimes violentos como aos crimes de gabinete. É um clima de terror penal.

 

Mas essa politização da PF e da Abin que o senhor menciona não está relacionada à disputa pelo setor de telefonia no País?

 Miguel Reale Júnior — Sabemos das lutas internas que houve dentro do governo, com a ação de ministros a favor ou contra determinadas empresas de telefonia. E a participação da PF e da Abin nisso é extremamente grave, porque demonstra que está havendo uma mistura da estrutura dos órgãos de segurança do Estado com interesses econômicos e políticos.

 

Sobre os agentes da Abin recrutados pelo delegado Protógenes Queiroz, ele sustenta, com base no decreto 4476, que teria o direito de fazê-lo, enquanto a defesa de Dantas diz que a investigação está comprometida por isso. Quem tem razão?

 Miguel Reale Júnior — Esse delegado desconhece que existe uma Constituição neste país. E ela estabelece que o poder de polícia para apuração de infrações criminais é da PF. É de uma pretensão inadmissível. Esse é um decreto da ditadura.

 

O senhor considera o processo penal no Brasil adequado para julgar e punir casos de crimes financeiros Há juristas que afirmam haver uma distorção com relação ao trânsito em julgado, por exemplo, que posterga até o final a execução da pena.

 Miguel Reale Júnior — O trânsito em julgado é uma garantia fundamental. As formas de elaboração probatória são normas de garantia para qualquer pessoa, de Dantas até o Zé da Silva. Se não, condena de vez, para que processo?

 

Mas ele não precisa ser aperfeiçoada para diminuir a impunidade?

 Miguel Reale Júnior — Aperfeiçoar é ter pessoal especializado - não fazendo os processos exclusivamente com base em interceptação telefônica. A dificuldade é que você chega e só tem aquilo como prova, apenas comentários sobre o que é falado nas escutas. Não há provas documentais nem periciais. Esses são processos que demandam avaliação cuidadosa, alguns têm 500 adendos, oito ou nove volumes... Fatos envolvendo crimes financeiros são extremamente complexos.

 

Um problema grande não é a disputa de facções dentro da PF? O senhor percebeu isso quando foi ministro da Justiça? 

Miguel Reale Júnior — Sempre houve facções disputando o poder dentro da PF. Porém, na nossa época não havia uma luta tão acirrada como hoje. Ela foi alimentada no governo Lula pela política da bisbilhotice. A interceptação telefônica passou a ser, também, um instrumento da guerra interna. E isso é muito grave, porque a polícia está se perdendo. É preciso que esse clima não comprometa a imagem da PF e sua função.

 


Miguel Reale Júnior é jurista e professor. Doutor pela USP e ex-ministro da Justiça.

 

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