terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Artigo Folha de São Paulo.

Imoral e ineficiente

FÁBIO KONDER COMPARATO


Agora descobrem todos, um pouco tarde, que a imoralidade do sistema capitalista alia-se à sua arrasadora ineficiência

DIANTE DA maior crise econômica mundial dos tempos modernos, o presidente da França, no fim do ano passado, propôs, como remédio, a "refundação do capitalismo". Trata-se, ao que parece, de um retorno às origens do sistema, com a correção dos desvios posteriores.
A teoria original do capitalismo, como se sabe, foi elaborada por Adam Smith em fins do século 18.
O pensador escocês concebeu a economia como uma ciência natural, alheia a preceitos morais e normas governamentais. Grande admirador de Newton, não hesitou em utilizar uma analogia astronômica para explicar sua teoria dos preços no mercado.
O preço natural, correspondente ao custo de produção, seria o centro em torno do qual gravitariam os preços de todas as mercadorias, não obstante alguns desvios de órbita temporários.
Entre as mercadorias, Adam Smith incluiu o trabalho subordinado. Ao analisar a escravidão, observou cruamente que o custo de manutenção de um escravo fica inteiramente a cargo do seu proprietário, ao passo que o do trabalhador assalariado é partilhado entre ele próprio e seu patrão. O que conduz logicamente à conclusão -ignorada pelos senhores de escravos no Brasil até o final do século 19- de que a servidão é menos vantajosa que o trabalho assalariado. Como se vê, o raciocínio é puramente contábil.
Sob a influência dos fisiocratas franceses, A. Smith sustentou que só a agricultura produz riqueza. O conjunto dos comerciantes, artesãos e fabricantes, escreveu, constitui "uma classe improdutiva", sustentada à custa dos proprietários rurais e dos cultivadores. Os banqueiros, ao contrário, exercem a útil função de transformar o "capital morto" ("dead stock") em capital produtivo (como se acaba de ver...).
Igualmente improdutivos seriam os agentes políticos. São textuais palavras suas: "O soberano, com todos os ministros que o servem, tanto na guerra quanto na paz, o conjunto dos militares, tanto do Exército quanto da Marinha de guerra, são trabalhadores improdutivos. São servos do povo, mantidos por uma parte do produto do trabalho das outras pessoas".
Por que, então, não extinguir a organização estatal? Adam Smith responde, sem rodeios, que o poder político foi instituído para a garantia da propriedade. Por conseguinte, ele "existe, na verdade, para defender o rico contra o pobre, vale dizer, aqueles que possuem algo contra os que nada têm" ("A Riqueza das Nações", livro 5, capítulo 1).
Como, então, explicar o funcionamento do sistema econômico?
É pela força do egoísmo racional, responde Adam Smith. "Cada indivíduo forceja continuamente por encontrar o emprego mais vantajoso do capital de que dispõe. É a sua própria vantagem, na verdade, e não a da sociedade, que ele tem em vista" (mesma obra, livro 4, capítulo 2). Mas, apressa-se em acrescentar, a procura da vantagem própria leva o indivíduo, necessariamente, a escolher o emprego de capital que se revela mais vantajoso para a sociedade.
Quer isso dizer que os verdadeiros criadores da riqueza nacional deveriam ser chamados a governar as nações e a formar o futuro governo mundial, igualmente preconizado pelo presidente Sarkozy?
Não foi esse o entendimento do primeiro grande teórico do capitalismo.
Sustentou ele que a injustiça e a violência dos governantes dificilmente admitem um remédio. Mas, aduziu, "a mesquinha rapacidade, o espírito monopolista dos comerciantes e fabricantes, que não são nem devem ser governantes, embora não possam talvez ser corrigidos, podem ser facilmente impedidos de perturbar a tranquilidade alheia" (idem, livro 4, capítulo 3).
Facilmente? Não foi o que vimos nos últimos meses.
Até há pouco, os bem pensantes justificavam as injustiças do capitalismo, pondo em realce a sua imbatível eficiência econômica. Agora, descobrem todos, um pouco tarde, que a imoralidade do sistema alia-se à sua arrasadora ineficiência.


FÁBIO KONDER COMPARATO , 72, é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP e autor, entre outras obras, de "Ética - Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno" (Companhia das Letras).

Nenhum comentário: